(FOLHAPRESS) – O Tesouro Nacional divulgou nesta segunda-feira (14) sua proposta para uma regra mais flexível do teto de gastos, que permite crescimento real das despesas conforme o nível e a trajetória da dívida pública. A regra também concede um bônus em caso de melhora do superávit nas contas.
Um texto de discussão assinado por oito técnicos do órgão apresenta os pilares da nova regra, que continuaria tendo um limite de despesas como principal âncora. A proposta foi antecipada pelo jornal Folha de S.Paulo em setembro deste ano.
A publicação do texto pelo Tesouro ocorre no momento em que a equipe do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), discute a chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) de Transição, que busca retirar do alcance do teto de gastos a despesa com o Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família).
A possibilidade de um gasto de R$ 175 bilhões fora do teto, por quatro anos ou até de forma permanente, assustou agentes do mercado financeiro, que temem uma piora significativa das contas e um descontrole na dívida pública. O valor poderia ir a R$ 198 bilhões, caso vingue a ideia de bancar investimentos com receitas extraordinárias.
Nos últimos dias, as discussões em torno da PEC e o discurso de Lula criticando o teto de gastos causaram nervosismo no mercado, elevando as taxas de juros -que servem de referência para o custo de financiamento do Brasil ao emitir títulos da dívida.
A proposta do Tesouro Nacional, que começou a ser elaborada antes das eleições, busca contribuir com uma alternativa para reformular as regras. “A gente está à disposição [da equipe de transição]. O Tesouro é um órgão de Estado. Não foi pela situação eleitoral ou de fim de mandato, a gente faria essa contribuição de qualquer maneira”, afirma o subsecretário de Planejamento Estratégico da Política Fiscal do Tesouro, David Athayde.
O desenho sugerido pelos técnicos está ancorado em três principais elementos: despesa, dívida e resultado primário. O limite de gastos sempre será corrigido ao menos pela inflação (como ocorre hoje), mas há possibilidade de um adicional dependendo do nível e da trajetória desses indicadores.
No caso do endividamento, os técnicos escolheram como referência a DLGG (dívida líquida do governo geral). Ela inclui governo federal, estados e municípios -mas, diferentemente de outros indicadores mais conhecidos (como a dívida bruta ou a dívida líquida do setor público, a DLSP), exclui dívidas de estatais e títulos públicos usados pelo Banco Central para fazer sua política de juro.
O objetivo central da escolha desse indicador é assegurar que as flutuações no teto de gastos tenham a ver com razões estritamente fiscais, sem interferências vindas da atuação do BC no mercado ou de artifícios como a venda de reservas internacionais.
A DLGG não seria uma meta, mas sim uma referência para indicar qual será o crescimento real máximo da despesa nos períodos seguintes. A taxa seria fixada a cada dois anos.
Se o diagnóstico for de redução da dívida, o crescimento real da despesa poderá ir de 0,5% até 2%. No sentido contrário, se a trajetória for de alta, o avanço dos gastos acima da inflação ficará entre 0% e 1%.
O que vai determinar o percentual a ser aplicado é o nível da dívida. Uma DLGG acima de 55% do PIB exigirá do governo maior contenção de gastos (ou seja, o crescimento ficará no mínimo permitido).
Entre 45% e 55%, o ritmo de expansão das despesas ficará em patamar intermediário. Abaixo de 45%, o governo poderá usufruir da elevação máxima permitida.
O ritmo de expansão do limite de despesas ainda pode ganhar um bônus de 0,5 ponto percentual (equivalente hoje a cerca de R$ 8 bilhões) sempre que as contas estiverem no azul e em trajetória de melhora. Para verificar se o governo terá direito a esse extra, será preciso analisar o resultado primário (diferença entre receitas e despesas, excluindo juros da dívida). Essa análise seria anual.
O mecanismo do bônus, segundo o Tesouro, permite que um governante seja “recompensado ou punido” dentro do próprio mandato por sua condução das contas. Diante de uma deterioração, o chefe do Executivo seria forçado a conter despesas. No sentido contrário, uma melhora o autorizaria a gastar mais.
A regra não entraria em vigor em 2023, ano crítico diante da fatura represada de gastos -como os R$ 52 bilhões necessários para assegurar a continuidade do piso de R$ 600 às famílias do Auxílio Brasil e os R$ 18 bilhões para bancar a parcela extra de R$ 150 por criança de até seis anos. A proposta não detalha como esse impasse seria resolvido.
A sugestão é que a regra comece a valer em 2024. No primeiro ano de vigência, a variação das despesas seguirá a regra atrelada à dívida, mas também terá um adicional único de 2% para reduzir a pressão sobre o custeio da máquina pública e os investimentos. Considerando o teto previsto na proposta de Orçamento de 2023, isso representaria um adicional de R$ 34,4 bilhões para o Poder Executivo.
A válvula de escape do crédito extraordinário, para despesas urgentes e imprevistas ou em calamidades, continuaria valendo.
Ao elaborar o desenho da proposta, o Tesouro partiu de algumas premissas. Para o órgão, a trajetória da dívida é tão importante quanto seu nível, pois indica a sustentabilidade das contas do país. Por isso, o planejamento de médio prazo é considerado essencial.
“Ela [regra] permite o investimento, mas aquele investimento sustentável ao longo do tempo. Ela permite um crescimento de despesa, mas aquele que é fiscalmente responsável. A gente entende as demandas, mas a gente também sabe o calcanhar de Aquiles. Não dá para fazer [uma política] e depois ter um custo de dívida incompatível”, afirma o chefe de projeto Mario Augusto Gouvea de Almeida, um dos autores da proposta.
A lógica de prever diferentes taxas de crescimento das despesas, conforme o cenário fiscal, também dá certa flexibilidade, ao mesmo tempo em que contribui para frear ímpetos gastadores em épocas de bonança (nem sempre duradouras). No entanto, os técnicos ressaltam a necessidade de continuar o processo de revisão de despesas para melhorar a eficiência do gasto.
“Regra fiscal nenhuma vai fazer milagre se a gente não repensar todo nosso arcabouço fiscal e não tiver vontade política de redesenhar as coisas. Nenhum teto vai se sustentar se a gente não olhar para cada política, não avaliar uma a uma. A gente quer um teto que seja flexível, mas olhando para a sustentabilidade”, afirma a auditora fiscal de Finanças e Controle Thais Riether Vizioli.
O Tesouro considera o limite flexível de despesa uma regra alinhada aos padrões modernos. O texto cita um levantamento do FMI (Fundo Monetário Internacional), segundo o qual ao menos 75% das economias avançadas tinham regras de despesa em 2021.
A integração da regra ao resultado primário, por sua vez, pode ajudar a reduzir ou controlar os gastos tributários e desonerações, uma vez que essas medidas reduzem a arrecadação e pioram o primário -colocando em risco o bônus de crescimento adicional do teto.
Uma inovação é a extinção do chamado contingenciamento, quando despesas dos ministérios são bloqueadas para assegurar a meta fiscal devido a uma frustração na arrecadação. Esse instrumento é criticado porque afeta o bom planejamento dos órgãos, que muitas vezes ficam travados ao longo do ano e recebem sinal verde para gastar nos últimos meses, gerando uma corrida que nem sempre preserva a qualidade da despesa.
No entanto, se o governo descumprir a meta de resultado primário, precisará apresentar uma justificativa pública -a exemplo do que o presidente do Banco Central precisa fazer quando estoura a meta de inflação.
O Tesouro também apresentou pontos de discussão, que não estão formalmente contemplados na proposta, mas são considerados relevantes para futuras discussões.
Um deles, como antecipou a Folha de S.Paulo, é a extinção do teto para pagamento de sentenças judiciais (precatórios), que voltaria a ser feito de forma integral. Outro é a possibilidade de estipular limites mais rígidos para outros Poderes, como Judiciário e Legislativo, que têm despesas concentradas em salários e contratação de servidores -portanto, não precisariam ter o mesmo crescimento do Executivo, responsável por tocar as políticas públicas.
Um terceiro ponto colocado pelos técnicos é a possibilidade de tratar como exceção ao teto o “investimento público verde”, voltado a questões ambientais ou climáticas, ou prever ajustes que permitam o uso de fundos ou doações internacionais para bancar projetos alinhados ao objetivo de preservação ambiental sem esbarrar no novo teto.
ENTENDA AS PROPOSTAS DE NOVA REGRA FISCAL
– Proposta do Tesouro Nacional: Autorizar um crescimento real do teto de gastos, acima da inflação, em taxas definidas de acordo com o nível e a trajetória da dívida líquida do governo geral. Além disso, a existência de resultado primário positivo (sinalizando arrecadação maior que as despesas) e crescente dá ao governo direito a uma espécie de bônus na expansão dos gastos.
– Proposta do PT: a equipe de Lula ainda não apresentou uma proposta concreta de regra fiscal, embora negocie a PEC da Transição, que pode tirar o Bolsa Família do alcance do teto de gastos. Economistas que integram o time da transição defendem mudanças no arcabouço fiscal. Entre as opções analisadas desde a campanha estão manter só uma regra de resultado primário, como era antes do teto de gastos, ou ainda estipular um limite de despesas mais flexível, com expansão acima da inflação e possíveis exceções para determinados gastos, como investimentos.
– Proposta de Felipe Salto: o atual secretário de Fazenda de São Paulo ex-diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado trabalha em uma proposta que tenha um limite para a dívida pública. Haveria também uma meta de superávit primário, calculada com base na trajetória da dívida, e um teto para diferentes gastos, fixado a partir das variáveis anteriores. No primeiro ano, porém, haveria uma licença extra de R$ 120 bilhões.
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