Carros deveriam ser usados de acordo com suas competências para não se tornarem estorvos na vida do motorista Um vizinho de condomínio comprou uma picape. Era fim dos anos 1990, ainda existiam peruas, a frota de importados crescia e as picapes, antes ferramentas de trabalho, foram promovidas a veículos de passeio (transformação que, diga-se, começou no país com a indústria fora-de-série na década de 1980).
E meu vizinho comprou uma cabine dupla zero km. Nome e modelo não vêm ao caso; o que interessa é que o trambolho tinha 1,80 metro de largura e morávamos em um prédio de 30 anos à época, apartamentos amplos e pé direito alto, mas vagas de estacionamento acanhadas.
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Não tenho nada contra picapes, mas ainda custo a entender o que leva alguém que vive na cidade, não carrega sacos de cimento e não faz carretos para levantar alguns trocados a se decidir por um caminhão em escala reduzida – e que vai rodar na maior parte do tempo com a caçamba vazia. A despeito disso tudo, meu vizinho optou por uma picape a diesel 4×4.
A picape cabia na vaga, mas apenas cabia: uma vez encaixada no espaço – se não me falha a memória, entre um Chevrolet Vectra e um Fiat Tempra –, meu vizinho tinha de recorrer às técnicas de faquir para sair ou entrar pela fresta de abertura da porta. Um peru no pires, como descreveu o zelador.
Picapes são muito grandes para caberem nas vagas de prédios antigos
Getty Images
Manobrar um veículo de mais de cinco metros de comprimento e diâmetro de giro de 14 metros por entre as colunas que brotavam da garagem devia ser outro tormento. A picape virou assunto entre os moradores e tema de discussão nas reuniões de condomínio.
O dono do Tempra e a senhora que dirigia o Vectra reclamavam das mossas, aqueles pequenos amassados na lataria, muitos se queixavam da fumaça e do cheiro do diesel no ambiente, outros notavam que parte da caçamba extrapolava as quatro linhas da vaga, o que era proibido pelo regulamento interno. De boa-praça, meu vizinho tornou-se persona non grata. Abatido, teve de se livrar do estorvo.
A depender de como e para que são usados, alguns carros podem se transformar em exatamente isso: estorvos. Para quem dirige e para os demais motoristas. Tornam a rotina de nos levar de um ponto a outro em angústia e não, como deveria ser, em satisfação. E não estamos falando exclusivamente de picapes, mas de qualquer carro fora de seu habitat ou apartado de sua vocação.
Ferrari 360 Modena não é um carro para atravessar valetas, ao contrário de uma… picape!
Divulgação
O piloto de competição, designer e artista plástico Anísio Campos (um querido amigo que neste mês de março completaria 90 anos de idade se não tivesse partido há quatro anos), me contou certa vez que uma de suas maiores frustrações foi guiar um superesportivo de um amigo no trânsito pesado. “Era como andar de moto dentro do apartamento”, comparou.
Tive a mesma sensação ao dirigir em 2004 uma Ferrari Modena na Rebouças, uma sempre travada avenida em São Paulo, rumo ao bairro da Bela Vista, local de onde seria a sessão de fotos. Seria: havia uma valeta intransponível no caminho. Uma picape, é preciso reconhecer, passaria por ali sem frear.
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