Desde 2003, foram produzidos mais de 40 milhões de veículos com motores que podem ser abastecidos com etanol ou gasolina Em maio de 2003, Autoesporte trazia os testes dos primeiros carros equipados com motor flex produzidos no Brasil: Volkswagen Gol e Polo e Fiat Palio. Mas se a publicação foi em maio, por que a reportagem que trata dos 20 anos do carro bicombustível, a gasolina e etanol, está saindo agora em março? Antes de responder à pergunta é preciso entender que o mercado brasileiro de duas décadas atrás era bem diferente.
Na ocasião, o carro a álcool (pois é, o termo etanol ainda não era usado) estava disponível no catálogo de todas as fabricantes e o combustível, em tese, podia ser encontrado em milhares de postos do país com preços bastante acessíveis — normalmente, 30% do valor do litro da gasolina. Ainda assim, os emplacamentos eram tímidos.
“As pessoas tinham receio de comprar um carro a etanol e depois faltar combustível”, conta Roger Guilherme, gerente de engenharia da Volkswagen. Por outro lado, o elevado custo da gasolina fazia com que alguns motoristas adotassem o chamado “rabo de galo”, colocando álcool no tanque dos modelos que só podiam ser abastecidos com gasolina. Como os motores não eram preparados para receber um combustível mais corrosivo, não é difícil imaginar o que acontecia.
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Logo, as fabricantes começaram a ter de atender clientes nas oficinas em razão desse comportamento. O que poderia ser uma tremenda dor de cabeça acabou se transformando em oportunidade.
Se faltava confiança ao público para comprar um carro apenas a álcool, mas sobrava etanol nos postos, por que não desenvolver carros que pudessem rodar com qualquer mistura?
No que diz respeito à engenharia, os motores flex eram desenvolvidos havia quase dez anos. A base eram os propulsores dos carros a álcool, que já tinham peças feitas com materiais resistentes à corrosão.
A diferença é que a taxa de compressão foi ajustada para um meio-termo entre o etanol e a gasolina. Mas ainda faltava um sistema de gerenciamento para entender qual mistura estava sendo queimada a cada momento.
Parte da resposta estava nos Estados Unidos, onde, desde o início dos anos 1990, havia carros que rodavam com o chamado E85, mistura de 85% de etanol (derivado de soja ou milho) e 15% de gasolina.
Solução foi usar a sonda lambda (no canto à direita) para ler os gases emitidos e entender qual combustível estava sendo queimado
Divulgação e Gettyimages
“Observamos que a tecnologia do E85 tinha custo maior. E o objetivo era massificar, não desenvolver uma tecnologia para carros de luxo. Essa preocupação levou a engenharia brasileira a fazer um trabalho muito diferenciado e substituir o sensor de combustível por um sistema mais barato, o de sonda lambda, que já era um componente usado na época”, disse João Irineu Medeiros, hoje vice-presidente de assuntos regulatórios da Stellantis. Ele teve grande atuação no desenvolvimento do sistema flex da Fiat, há 20 anos.
O funcionamento da sonda lambda nos carros bicombustíveis é relativamente simples. “Usamos o sinal desse sensor para fazer uma previsão de qual é o conteúdo de etanol que está sendo queimado naquele momento. Não é uma medição do tanque, mas sim o que o motor está queimando. Esse é um modelo matemático complexo que evoluiu muito rapidamente”, explica Medeiros.
Os dados colhidos pela sonda eram processados por uma central eletrônica criada pela Magneti Marelli chamada de SFS, sigla para Software Flexfuel Sensor. A tecnologia é capaz de entender qual é a mistura naquele momento para ajustar o tempo de ignição e que proporção de ar e combustível deve ser queimada.
Uma curiosidade: apesar de ser uma empresa do grupo Fiat na ocasião, a Marelli também fornecia o programa para a concorrente, Volkswagen.
E foi com esse sistema funcionando no motor AP 1.6 do Gol que a Volkswagen aproveitou o aniversário de 50 anos de operações no Brasil para lançar o primeiro carro flex do país. A cerimônia aconteceu em 24 de março de 2003, na fábrica de São Bernardo do Campo (SP). É dessa data a famosa foto do presidente Lula simulando o abastecimento de um Gol.
Apesar de o Gol flex ter sido apresentado em março, foram quase dois meses até que o carro fosse liberado para nosso primeiro teste
Reprodução e Gettyimages
Mas há um detalhe… ainda não havia produção em série. A VW aproveitou as festividades para apresentar o carro, mas as entregas só ocorreram meses depois. Até lá, a Fiat apresentou o Palio 1.3 e a Chevrolet, o Corsa 1.8, ambos com motores flex. Porém, a foto que ficou para a história é a do Gol.
Roger Guilherme conta outras curiosidades da época. “Os sistemas flex estavam prontos, mas parecia que ninguém queria lançá-los. Faltava alguém de pulso para dizer que era para lançar. E o presidente da Volkswagen na época reconheceu que era disso que o mercado precisava”, conta.
A cerimônia de apresentação atraiu a atenção de jornalistas de fora do país e virou um curioso caso de família. “Meu irmão trabalhava como piloto de companhia aérea e estava em Londres em uma escala. Ligou a TV no quarto do hotel e me viu dando entrevista para uma equipe estrangeira”, brinca Guilherme.
Nem mesmo o mais otimista engenheiro, porém, esperava um sucesso tão grande. “As coisas aconteceram muito rapidamente a partir do momento em que o público conheceu a tecnologia e passou a poder escolher o combustível.
Etanol (ainda álcool) era muito mais barato que a gasolina na época
Divulgação
A adoção foi praticamente imediata”, revela João Irineu. Pelo lado da Volkswagen, a sensação foi a mesma. “Não esperávamos que [o sucesso] fosse tão rápido, com a competição para lançar um carro flex, como aconteceu na época”, disse André Drigo, gerente de desenvolvimento de produto da Volkswagen.
De 2003 até o início deste ano, mais de 40 milhões de carros flex ganharam as ruas do Brasil. Hoje, eles são cerca de 90% dos modelos novos vendidos no país. Até mesmo marcas de luxo, como BMW, Mercedes-Benz, Audi e Jaguar Land Rover, lançaram modelos premium flex.
Voltando ao início dos anos 2000, o sucesso rápido fez com que as fabricantes começassem outra corrida, dessa vez para colocar os motores bicombustíveis em todos os lançamentos.
Meses depois de apresentar o Gol 1.6 Total Flex, a Volkswagen lançou o Fox. “O Fox já estava pronto, mas sem o motor flex. Então tivemos de correr para fazer a adaptação dos motores EA111 1.0 e 1.6, porque seria um fiasco se o carro chegasse às lojas sem ser flex”, relata Drigo.
Daí em diante, todas as marcas com fábricas no Brasil acabaram lançando seus sistemas flex. Em 2004, a Fiat atualizou a família de motores Fire, substituiu o 1.3 por um 1.4 mais moderno. A Volkswagen produziu o AP 1.6 até 2012. Já o EA111 segue em linha na Saveiro na versão 1.6.
Em 2009, os alemães foram os primeiros a abolir o tanque auxiliar para partidas a frio — movimento que seria seguido por todos nos anos seguintes.
A inovação mais recente é da Toyota, pioneira em oferecer um carro híbrido com motor flex, o Corolla, em 2019. Dois anos depois, o SUV Corolla Cross também adotou o conjunto formado pelo motor 1.8 aspirado a combustão com outro elétrico. Combinados, entregam 122 cv. O consumo urbano com etanol chega perto de 12 km/l — algo impensável anos atrás.
Toyota testou o sistema híbrido flex no Prius, mas lançou a tecnologia no Corolla, em 2019
Divulgação e Gettyimages
“Nos dá muito orgulho inaugurar essa fase do híbrido flex como novo ícone do nosso mercado, combinando um motor elétrico de alta eficiência com o uso do etanol como biocombustível”, disse Roberto Braun, diretor de assuntos governamentais da empresa.
O que vem por aí
Só que, mais do que ser amigo do bolso do motorista, o carro híbrido abastecido com etanol tem um importante papel na descarbonização da frota. Várias fabricantes enxergam no combustível uma alternativa aos ainda caros carros elétricos para reduzir as emissões de CO2 nos próximos anos.
“Do poço à roda, a pegada de carbono do híbrido flex, quando abastecido com etanol, é bastante próxima à do carro elétrico. E é mais acessível”, disse Braun. O discurso é o mesmo adotado por Fiat e Volkswagen. As duas fabricantes estão desenvolvendo a tecnologia, em uma espécie de reedição da corrida de 20 anos atrás.
O presidente da Stellantis na América do Sul, Antonio Filosa, afirmou que o grupo terá um carro híbrido flex à venda no Brasil até o final do ano. Medeiros, porém, não avançou no assunto e disse que o grupo estuda mais de uma possibilidade.
“O etanol tem algumas limitações, como a dificuldade de pulverizar a frio e a menor quantidade de energia contida no litro em relação à gasolina. Mas também traz características interessantes, como a possibilidade de liberar hidrogênio. É um conteúdo energético que pode ser usado para melhorar a eficiência ou gerar célula de combustível”, explicou o executivo.
Da parte da Volkswagen, uma área específica trabalha na descarbonização, não apenas dos veículos como de todo o processo produtivo, da cadeia de fornecedores ao descarte. Roger Guilherme lidera o chamado Way to Zero Center, que atualmente reúne 11 pessoas.
O grupo pensa em soluções para chegar ao objetivo de transformar a fabricante em uma empresa totalmente neutra em emissões até 2050. E o carro híbrido flex pode ajudar nessa jornada.
“Não acho que deva existir uma tecnologia dominante, e sim algumas alternativas. E o cliente deve escolher a mais adequada”, conta Guilherme. Ao contrário da Fiat, a Volkswagen não deu uma estimativa para lançar seu carro híbrido a etanol, mas disse que estuda sistemas leves, convencionais e até plug-in.
Se 20 anos atrás o carro flex nasceu como uma alternativa pouco provável para solucionar um problema de confiança do consumidor em relação ao etanol, hoje o biocombustível pode ser a chave para o Brasil ter uma frota com baixos níveis de emissões.
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