Dani Amaral compartilha sua vida com 367 mil seguidores e passou por situação de preconceito para tirar sua CNH por não ter os braços Para dirigir um carro no Brasil é necessário tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Todo o processo até conseguir o documento envolve aulas, provas teóricas e práticas e exame psicotécnico e oftalmológico. Mas, para alguns o desafio vai além de memorizar as infração e treinar a baliza perfeita. É o caso de Dani Amaral, palestrante e influenciadora de 31 anos, que dirige só com os pés e enfrentou, além da burocracia, o diagnóstico de que não poderia tirar a CNH por ter deficiência.
Em entrevista exclusiva à Autoesporte, a paranaense compartilha como é o seu dia a dia dirigindo com os pés, as dificuldades para a emissão da CNH PCD no Brasil e como conseguiu, junto ao Detran, que seu carro, hoje uma Chevrolet S10, não precisasse de grandes adaptações.
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Natural do distrito de Pau d’Alho do Sul, em Assaí, no norte do Paraná, a criadora de conteúdo conta que se tornou uma pessoa com deficiência aos quatro anos de idade, ao sofrer um acidente enquanto brincava na plantação da família: “Foi um acidente no maquinário agrícola. Eu estava brincando e acabei colocando a minha mão numa peça que se chama cardan. Essa peça acabou me puxando e arrancou os meus dois braços”.
Dani relembra que os médicos não sabiam se ela sobreviveria, porque perdeu muito sangue até chegar ao hospital. Mesmo com grande risco, ela sobreviveu e teve uma recuperação demorada e desafiadora em um hospital na cidade de Londrina, onde aprendeu a realizar tarefas do dia a dia sozinha, como escovar os dentes e escrever, usando os pés.
Dani Amaral sofreu o acidente aos quatro anos de idade
Sérgio Ranalli
Seja pela estrutura familiar, apoio no hospital, convivência com os irmãos mais velhos ou a insistência dos pais para que a filha não frequentasse uma escola direcionada à crianças portadoras de deficiência, Dani enxerga que o processo de adaptação a um novo modo de viver foi muito mais desafiador para a família, que não tinha como referência outras famílias com crianças deficientes. Por isso, a influenciadora faz parte de uma associação chamada Dar a Mão, focada justamente em oferecer acolhimento aos pais em situações como a sua.
“Como eu era muito pequena, acredito que para mim foi mais fácil assimilar a deficiência, porque eu já cresci de uma maneira diferente. Eu fui aprendendo conforme a necessidade: primeiro a escrever e a escovar os dentes, e depois mais moça, comecei a sentir vontade de aprender a me maquiar e a cuidar do meu cabelo”.
A vontade de dirigir
Dani Amaral sempre teve vontade de dirigir
Sérgio Ranalli
Dani conta à Autoesporte que desde pequena tinha vontade de dirigir, mas assim como os pais, não teve pessoas com uma deficiência parecida ou igual à sua como referência: “A primeira vez que eu vi uma pessoa com a mesma deficiência que a minha foi quando eu tinha uns nove anos de idade, e foi na TV, no Programa do Gugu. Eu fiquei enlouquecida quando eu vi, porque eu achava que só existia eu no mundo daquele jeito”.
Dani diz que aquela menina lavando louça, se maquiando e dirigindo, despertou sua vontade e esperança de dirigir. Na época, o programa mostrou que para que a moça na televisão pudesse dirigir seu veículo recebeu uma adaptação no volante que ficava posicionado no assoalho, para que a condução fosse feita com os pés.
Dani Amaral tem uma Chevrolet S10
Sérgio Ranalli
Assim, aos 19 anos, a paranaense aprendeu a dirigir. Diferente do que se imagina, seu primeiro contato com o volante de um carro foi com um Ford Del Rey “bem velhinho” — como ela mesmo descreve — que o pai tinha comprado para usar no sítio. “Na época eu já namorava o Raí (marido), que não tinha carro, então a gente sempre saía com esse Del Rey pelas estradas de chão. Eu ficava olhando ele dirigir e pensava ‘acho que eu consigo dar um jeito de fazer isso aí’ “.
Ela conta que tem muita mobilidade com a perna esquerda, então conseguia segurar o volante com o pé. Com a perna direita ela controlava o acelerador e o freio, enquanto o seu namorado trocava as marchas. A maior dificuldade, por outro lado, não estava em aprender a dirigir, mas sim no processo para emitir o a CNH.
Dani aprendeu a dirigir em um Del Rey
Carlos G. de Paula
Isso porque, muitas autoescolas e órgãos de trânsito não estão preparados para prestar serviço a uma pessoa que seja portadora de deficiência. No cenário da Dani, a falta de instrução dessas instituições a impediu de dar início ao processo de habilitação na primeira autoescola que visitou.
Moradora de Arapuã desde a infância — pouco tempo depois do acidente, a família se mudou para lá —, a palestrante fez contato com três autoescolas até conseguir iniciar as aulas de direção, entre o final de 2017 e início de 2019. O primeiro estabelecimento, no município próximo de Ivaiporã, não aceitou Dani como aluna e até supôs que uma “pessoa que não possui os dois braços não poderia dirigir pela lei”. Nessa época, ela já tinha 25 anos.
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Mesmo com o questionamento, ela não desistiu justamente por saber que pessoas na sua condição tinham CNH. A autoescola afirmou não ter o carro adaptado para oferecer as aulas. Já em Londrina, outro centro de formação de condutores também afirmou não ter o carro adaptado, mas informou que um cidadão com deficiência poderia utilizar o próprio veículo, já com as adaptações exigidas pelo Detran, para fazer as aulas, sendo vinculado à frota da empresa.
A adaptação do carro
Após tomar conhecimento dessas informações, Dani então utilizou seu direito de adquirir um carro zero com isenção para PCD e comprou um Fiat Cronos com câmbio automático. “Quanto a gente estava no sítio eu dirigia junto com meu pai e o Raí, porque eu gostava. Mas lembro que meu irmão comprou um carro automático e eu pensei ‘Se eu só não consigo mudar de marcha sozinha, então eu consigo dirigir um carro automático sozinha’ “.
Depois de comprar o carro zero com isenção, falaram para ela passar por um perito do Detran, que daria o laudo sobre a condição, ou não, de dirigir e falaria o que precisaria adaptar no carro. Essas foram as orientações dadas por uma terceira autoescola, também em Ivaiporã, onde a paranaense, já em 2019, finalmente deu entrada no processo de habilitação.
Mesmo seguindo essas instruções, o medo de passar por outra situação de preconceito e ter seu direito negado motivou a criadora de conteúdo a separar vídeos e casos parecidos com o seu para mostrar à perícia.
Dani conta ainda, que “deu uma carona” para o perito, com a intenção de mostrar à ele que tinha plenas condições de ter uma carteira de habilitação: “Como eu já tinha o Cronos, falei para ele dar uma volta comigo e fui mostrando como usava a seta, colocava o sinto e andava com o carro. Ele então, disse que eu realmente não precisaria de nenhuma adaptação”.
Dani Amaral teve um Fiat Cronos antes da S10
Sérgio Ranalli
Sem necessidade de dirigir com o volante no assoalho do carro, assim como a menina que tinha visto na televisão anos antes, o laudo pericial de Dani exige apenas que o veículo seja automático, tenha direção hidráulica e que seja feito o uso de um pomo no volante para auxiliar o manuseio. Vale dizer, que este último item é removível e encaixável, o que significa que a influenciadora pode dirigir qualquer carro que siga os outros requisitos já mencionados.
Para finalmente conseguir fazer as aulas teóricas e práticas, era necessário ir até uma unidade de atendimento do Detran para colher a digital, situação que fez a palestrante se ver em outro cenário de capacitismo. “O rapaz que me atendeu ligou para o superior, porque ele não sabia como seria feita a coleta da digital. Eu escutei ele no telefone com a mulher, que disse que eu não poderia tirar carteira por não ter os dois braços”, relembra.
Dani Amaral ligando o carrro
Sérgio Ranalli
Mesmo com o laudo pericial, frases como “Ela sabe que tem que adaptar o carro?” e “Onde ela pesquisou que pode dirigir? No Google?” foram ouvidas por Dani durante o processo de biometria; situação que ela compartilhou na época, em seus stories no Instagram.
“Eu fiquei com muito medo, porque me remeteu à todas as vezes em que eu queria fazer algo, e alguém me impediu. Foi quando eu cheguei em casa e fiz aquela sequência de stories, porque o rapaz disse que ia coletar minha digital, mas que eles poderiam embargar meu processo”.
Independência e oportunidades profissionais
Dani Amaral sofreu muito preconceito até conseguir tirar o documento
Sérgio Ranalli
Anos após enfrentar situações de capacitismo e concluir o processo de habilitação, Dani conseguiu exercer a independência que a motivou a correr atrás desse direito. O sedã compacto já deu lugar à picape média, como comentamos, que segundo a influenciadora a faz se sentir mais segura para dirigir em rodovias.
Para dirigir, ela usa o pé direito para comandar o carro com acelerador e freio. Volante, aletas de seta e para-brisas, freio de estacionamento, manopla de câmbio, luzes, espelhos retrovisores e central multimídia são todos comandados pelo pé esquerdo.
“Eu sempre olho se o freio de mão não é tão difícil de puxar, se o botão da manopla de câmbio é muito difícil de segurar e as facilidades de luz e para-brisas (automático na S10), pois são coisas que facilitam. Nem todo mundo sabe lidar com uma deficiência e ninguém é obrigado a saber, mas a gente é obrigado a respeitar e dar oportunidade; e foi o que essa autoescola fez comigo”, reflete.
Dani Amaral faz tudo com os pés
Sérgio Ranalli
Hoje, ela comenta que sua história inspira não só pessoas com uma deficiência igual ou parecida, como também pessoas sem deficiência. Isso porque, Dani recebe vários comentários de pessoas que tinham medo de dirigir, mas resolveram enfrentá-lo, após ouvirem seus relatos e verem seus vídeos ao volante. “Quando eu comecei na internet e eu vi pessoas chegando até mim desse jeito, eu pensei ‘Eu posso ser essa ponte também pra desmistificar essa questão da deficiência pra quem não tem, e pra quem tem, é uma maneira de termos uma troca’”.
Além dos perfis públicos, a influenciadora também tem um grupo no WhatsApp com meninas do Brasil inteiro portadoras da mesma deficiência, onde trocam experiências. “O meu processo (de tirar habilitação) não foi tão demorado por minha causa, porque eu sei que se eu não tivesse falado para o perito dar uma volta comigo no dia da perícia, ele teria pedido volante no assoalho e muitas coisas que, em vez de me ajudar, iriam me atrapalhar”, conclui.
Chevrolet S10 de Dani Amaral não tem adaptações
Sérgio Ranalli
Ter a CNH também abriu portas profissionais para a criadora de conteúdo: Dani tem um quadro em seu canal no Youtube, onde dá uma carona para um entrevistado enquanto faz as perguntas. Além disso, também compartilha em seu canal e perfil no Instagram, receitas, vídeos se maquiando, viagens e estilo de vida.
“Minha sensação ao volante hoje, é de poder e independência. Saber que eu estou dentro do carro, eu por mim mesma, me dá uma sensação de liberdade muito grande e de poder, de saber que eu posso fazer aquilo que eu quero”, afirma.
Formada em contabilidade, Dani se tornou palestrante entre 2017 e 2018, após se aprofundar em estudos sobre o comportamento humano. A paranaense também aplica treinamentos interpessoais para diversas empresas.
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