No Dia Internacional da Mulher, Autoesporte entrevista a motorista que arrisca a vida com 60 toneladas no caminhão para chegar onde poucos chegam Em algum lugar do mapa polar neste Dia Internacional da Mulher, está a austríaca Karolina Plecha, ou simplesmente “Ice Road Queen” — ou Rainha da Estrada de Gelo —, com seu carregado caminhão. E digo por experiência própria: os -10 °C do inverno europeu são mais suportáveis do que os -2 °C do outono do Círculo Polar Ártico. Isso porque a sensação térmica despenca por causa dos ventos marítimos vindo do Oceano Glacial Ártico.
Digo em algum lugar, porque não ouso cravar o local exato onde Plecha está agora, já que ela dirige nada menos do que 10.000 km por mês por essas perigosas estradas do Ártico e a temperatura neste período do inverno bate os -20 °C, facilmente.
Karolina Plecha tem o apelido de “Ice Road Queen” — ou Rainha da Estrada de Gelo
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Ficar a centímetros de rolar montanha abaixo com um caminhão ou dormir na floresta e acordar assustada com um animal selvagem tentando abrir o veículo são só algumas das situações atípicas que ela vive durante o dia a dia.
O apelido de “Ice Road Queen” não é à toa, porque não é qualquer pessoa que faz o que ela faz. Dirigir um carro no clima extremo com gelo e neve é desafiador, agora imagine atravessar países como Noruega, Suécia, Finlândia e até Rússia pilotando um caminhão semirreboque — com eixo dianteiro direcional — de mais de 25 metros de comprimento e 60 toneladas de peso com a carga.
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Para contextualizar, o semirreboque é um transporte de carga independente acoplado ao caminhão — como se fosse uma caçamba —, portanto, precisa da tração da tração do caminhão para se movimentar. Os semirreboques têm de um a três eixos, dependendo da necessidade de carga.
Nascida em Retz, na Áustria, Plecha viveu a maior parte da vida em Varsóvia, na Polônia, e se mudou para Tromsø, uma pequenina cidade na Noruega, em 2016, onde realizou o sonho de virar caminhoneira. Ela diz que no país nórdico várias mulheres são motoristas de caminhão e que é algo totalmente normal, porém, onde ela mora, no extremo norte do país e já dentro do Círculo Polar Ártico, a história é bem diferente.
“Eu vi que não havia motoristas suficientes nessa região, então tirei a carteira de motorista para ônibus grandes e caminhões (D, C+E). Na Noruega, motorista é motorista, independentemente do sexo. Mas o Norte é exigente e tem poucos motoristas por aqui, principalmente mulheres. Os próprios noruegueses dizem que o sul e o norte do país são dois mundos diferentes”, explica.
As estradas que ela enfrenta são com condições climáticas extremas
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Plecha conta que são cerca de 10.000 km percorridos por mês com o caminhão, principalmente pelo norte de toda a Escandinávia, mas às vezes também vai para as calmarias da região sul, mais precisamente até a capital da Noruega, Oslo.
O modelo de caminhão é de acordo com o trabalho que precisa ser realizado e varia entre os modelos R500, R540, 730S, todos da Scania, com motor V8 e potência de no mínimo 500 cv. Ela se define como uma “motorista de aluguel”, já que as empresas a contratam para realizar essas verdadeiras missões.
Ela explica que dirige caminhões de 3 eixos com pneus especiais, como pneus de inverno ou até mesmo correntes para situações mais extremas. Dependendo do caminhão, há uma máquina que joga areia e sal na frente dos pneus para dar mais aderência. O “kit de sobrevivência”, segundo Plecha, é ter roupas bem quentes, sempre usar luvas de inverno e carregar ferramentas como pá e martelo.
Em algumas operações, é preciso colocar corrente nos pneus do caminhão
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Na Escandinávia é obrigatório ter uma profundidade de piso de pelo menos 5 mm nos pneus dos veículos com peso superior a 3.500 kg, entre 1º de novembro e o primeiro domingo após a segunda-feira de Páscoa. Em Nordland, Troms e Finnmark, na Noruega, a obrigatoriedade tem um prazo ainda maio pelas condições: de 16 de outubro e 30 de abril.
“Sem dúvida as condições das estradas são desafiadoras e perigosas. Aqui é inverno por oito meses, então significa neve, gelo e temperaturas negativas durante todo este período. Também existe a noite polar, que por dois meses só há quatro horas de sol por dia. Minha vida é passar perigo, mas eu gosto”, diz a “Ice Road Queen”.
A “Ice Road Queen” já passou por alguns sustos nas estradas, mas nunca sofreu um acidente
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Além das condições climáticas, as estradas em si, também exigem atenção redobrada. “Às vezes não conseguimos ver a estrada porque está nevando e ventando muito. O foco deve ser total o tempo todo porque aqui não há grandes largas. De vez em quando precisamos parar o caminhão e movê-lo estrategicamente para conseguir espaço para passar porque as ruas são pequenas, estreitas e com muitas curvas e subidas. Quando está muito escorregadio o trailer quer ser mais rápido que o caminhão”, brinca. O trailer, no caso, é o semirreboque acoplado ao caminhão.
Plecha transporta todo o tipo de mercadoria, como remédios e suprimentos básicos do dia a dia, mas não costuma transportar comida. Um detalhe muito importante para garantir que a mercadoria chegue em condições de uso no seu destino final, é controlar a temperatura interna do baú de cargas, se não, tudo congela e todos os suprimentos estragam.
Vale lembrar que todos os lugares que ela passa são no extremo norte do planeta, então a única forma dos suprimentos chegarem até lá é via transporte rodoviário.
O “kit de sobrevivência” dela conta com roupas específicas para o frio, se não o corpo não suporta a temperatura do Ártico
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“Se for levar mercadoria superdimensionada, como bens valiosos, precisa de documentos especiais do governo e um carro especial acompanhando na frente, mas não carrego essas mercadorias com muita frequência”, explica.
Aventuras e sustos nas estradas é o que não falta na vida da “Ice Road Queen”. “Uma vez quando eu dormi em algum lugar selvagem na beira da estrada e ouvi um barulho estranho que me acordou. Quando fui ver, era um enorme alce checando o que tinha dentro do caminhão. Não sei quem estava mais assustado, eu ou o alce”, conta com bom humor.
Karolina Plecha também é fotógrafa de céu, principalmente de Aurora Boreal
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Dificuldade para abrir o trailer da mercadoria também é algo normal na vida dela. “Uma vez congelou tudo e tinha uns 10 cm de neve dura e embaixo havia gelo puro, então precisei pegar o meu martelo e ficar quase duas horas quebrando o gelo para conseguir abrir o baú e ter acesso a mercadoria”.
Apesar de todos os perigos da estrada, ela diz que nunca sofreu acidente, porém, chegou muito perto de sofrer um que certamente seria fatal, mas a cena acabou sendo digna de um filme do Missão Impossível ou 007.
“Passei por susto muito grande apenas uma vez, quando quase deslizei em um fiorde. O solo estava totalmente sem aderência e o caminhão literalmente patinando no gelo com toda a carga balançando. Perdi o controle do volante e fui direto para a beira do fiorde. Até eu abri a porta para pular, mas felizmente o caminhão parou na neve gelada a uns 5 cm na borda da montanha”.
Karolina Plecha carrega qualquer tipo de suprimento no caminhão, mas não costuma transportar comida
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Os fiordes são gigantescas entradas de mar entre duas montanhas, como se fosse uma espécie de corredor. Alguns fiordes têm mais de 300 km de comprimento e alturas que chegam a 1.500 metros.
Além de caminhonheira, Plechala é fotógrafa e também consegue viver no seu dia a dia o que é o sonho de muitas pessoas: conviver com a Aurora Boreal durante meses no ano.
É fácil entender o porquê de não ter muitos motoristas de caminhão nessa região do mundo. O risco de morte, seja por acidente ou pelo clima extremo, é uma realidade diária. Mas, você pensa que esses sustos e o cansaço de dirigir 10.000 km por mês intimidam a “Ice Road Queen”? “Definitivamente, não. E as luzes da Aurora ajudam a deixar o trabalho mais agradável”, finaliza com todo o bom humor que ela carrega.
Encerro essa reportagem, que começou a -10 °C no inverno da Áustria, direto do verão brasileiro com um calor de 30°C. A Rainha da Estrada de Gelo que me perdoe, mas essa temperatura tropical é muito mais agradável do que o da Áustria e da estrada do Ártico com seus -20 °C que ela deve estar enfrentando neste exato momento.
Karolina Plecha diz que o fenômeno natural ajuda a manter o trabalho feliz
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