Placa do Mercosul foi perdendo vários itens de segurança com o passar dos anos Imagine comprar um carro zero quilômetro em janeiro e, no mês de março, descobrir que você foi notificado com 197 multas de trânsito — e não reconhece nenhuma. Sabe o que aconteceu? A placa desse carro foi clonada. O caso é de 2017, um ano antes do início da implementação da placa Mercosul, instituída em setembro de 2018 (inicialmente no Rio de Janeiro). A promessa era proporcionar mais segurança e dificultar crimes como o descrito acima.
Porém, não foi isso o que aconteceu. Desde fevereiro de 2020 oficializada em todo o país, a placa Mercosul facilitou a falsificação, dificultou o combate ao crime e até virou ação no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas… por quê?
A história começa no dia 6 de março de 2018, quando o Diário Oficial da União publicou a Resolução nº 729 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). O documento de 26 páginas especificava a implementação do novo modelo de Placas de Identificação Veicular (PIV) no padrão dos países do Mercosul.
Várias fábricas clandestinas de placas veiculares são alvos de operações da Polícia Civil pelo Brasil
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Pouco mais de um ano depois, novas resoluções surgiram para remover da primeira versão da placa itens como o lacre de segurança, a bandeira do estado e o brasão do município, além da inscrição com efeito refrativo. As remoções visavam baixar o custo da placa; e, segundo o Contran, manter o QR Code já traria a segurança necessária. Porém, a retirada desses itens causou “prejuízos imensuráveis à segurança”, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Placas Veiculares (Anfapv).
Fora os prejuízos referentes aos itens de segurança, a Anfapv ainda ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade contra a Resolução nº 780/2019 do Contran. O objeto da ação é o artigo 10 da resolução, que estabelece que os serviços de fabricação e estampagem das placas podem ser feitos por meio de credenciamento de empresas interessadas sem licitação.
“Presumindo que o credenciamento é livre a todos que preencham as condições, qualquer cidadão poderá fabricar, estampar e emplacar o próprio veículo, bastando que efetive seu credenciamento e tenha equipamentos adequados”, alerta a Anfapv.
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O número de empresas estampadoras, que aplicam os caracteres das placas, aumentou nos últimos anos, mas não a segurança — o que deixa caminho livre para o crime e prejudica as empresas que cumprem a lei. Os Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans) também perderam o controle do fornecimento dessas placas, diz a Anfapv.
“Atualmente, há uma grande união entre fornecedores de matérias-primas e insumos, fabricantes e estampadores de placas veiculares, que dão sugestões para ampliar a segurança e, principalmente, a fiscalização dos órgãos estaduais e federais para trazer maior controle aos processos. Está mais fácil para os criminosos burlarem as regras impostas pelos órgãos reguladores”, afirmou a Autoesporte o presidente da Anfapv, Cláudio Martins.
Autoesporte teve acesso a depoimentos, fotos e vídeos da Polícia Civil, de diferentes regiões do Brasil, de operações para fechar fábricas clandestinas que produzem placas falsas, das quais as do Mercosul são a grande maioria.
Sem a identificação do estado ficou mais difícil para as autoridades fazerem a investigação
André Schaun
“Deixar somente o QR Code como item de segurança é algo muito fraco, pois ele não traz segurança. Essas fábricas clandestinas simplesmente imprimem ou usam uma máquina de serigrafia para colocar na placa clonada um código qualquer, sem validação”, conta Reinaldo Paiva, dono da SP Blanks, uma fábrica de placas automotivas na cidade de Araras, no interior de São Paulo.
O empresário, que trabalha há mais de 30 anos com placas automotivas, já teve problemas com clonagem. Certa vez, um delegado de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, entrou em contato com ele e avisou que cinco carretas com a mesma placa haviam sido apreendidas. Uma delas tinha o registro da fábrica dele. “Das cinco carretas, uma placa era minha: a oficial. O que os criminosos fizeram? Pegaram a placa original, clonaram quatro vezes e colocaram um QR Code sem validação nelas. A clonagem ficou muito mais fácil do que era antigamente, com a placa cinza”, destaca Paiva.
Com a remoção dos itens em função das resoluções, o QR Code se tornou o recurso mais seguro — pelo menos deveria ser, pois é com o escaneamento dele, no canto esquerdo superior da placa, que são acessadas as especificações do carro.
Placa no padrão Mercosul entrou em vigor pela primeira vez no Rio de Janeiro (Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo)
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O código bidimensional, que substituiu o antigo lacre, é acessado por meio do aplicativo Vio, desenvolvido pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), que pertence ao Ministério da Fazenda.
No aplicativo gratuito, disponível para Android e iOS (o sistema operacional dos iPhones), é possível acessar diversas informações do carro, tais como: data, hora, município e estado da estampagem, situação da placa, dados do fabricante da chapa e do estampador (CNPJ e razão social), os últimos cinco números do chassi, estado e município de registro do veículo, marca e modelo, ano de fabricação e ano/modelo.
De acordo com Paiva, várias fabricantes não validam a placa para não pagar a taxa do Detran, que, em São Paulo, por exemplo, é de R$ 49. Não validando a placa não são pagos também os R$ 10 de taxa do Serpro; portanto, não gastam R$ 59 com impostos. Mesmo sem validação é possível legalizar a placa, por isso muita gente compra a placa não validada sem saber.
Então, aqui vai uma dica muito importante: baixe o app Vio, escaneie o QR Code do seu carro e veja se consegue acessar todas as informações descritas acima. Caso não consiga, muito provavelmente sua placa não foi validada e você nem sabe. E se for comprar um carro usado ou um novo, faça o mesmo procedimento, para a própria segurança.
Mas como saber se a placa do seu carro foi clonada? Praticamente, a única forma de descobrir que a placa do seu carro foi clonada é quando você passa a receber multas indevidas. É muito comum chegar uma atrás da outra, acumulando diversas infrações em um período curto de tempo.
Criminosos fazem anúncios de placas falsas pela internet, em vários grupos e redes sociais
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Luis Rigamonti, advogado especialista em crimes de trânsito, diz que a procura por parte de vítimas que tiveram a placa do carro clonada cresceu depois da chegada da identificação do Mercosul. Ele reforça que, além de o QR Code poder ser fraudado, a falta de identificação de estado e município é o fator que mais facilitou a não identificação de criminosos em âmbito nacional. Se antes davam prioridade para circular com o carro dentro do estado em que a placa foi clonada, agora querem justamente ir para longe.
“Um carro que circula dentro de um estado com placa de outro estado tem muito mais chance de ser parado pelas autoridades. Com a placa Mercosul isso acabou, o que facilita para o bandido circular livremente pelo Brasil”, ressalta o advogado.
Nos depoimentos ouvidos, a maioria das vítimas de clonagem veicular receberam multas de outros estados. O caso citado no início desta reportagem, das 197 infrações, reforça o argumento. O fato aconteceu em 2017, quando não havia a placa Mercosul; a vítima era de São Paulo e todas as multas foram registradas dentro do estado. Já no caso das novas vítimas, com placa Mercosul, tem carro registrado em São Paulo com placa clonada no Tocantins; carro da Bahia com placa clonada em Brasília; do Paraná no Piauí; e por aí vai.
O crime segue uma lógica para dificultar a investigação: a placa clonada é usada em carros do mesmo modelo, ano de fabricação e cor que o veículo com a placa legalizada. E o que fazer se a placa do seu carro for clonada? Faça um boletim de ocorrência na delegacia para comprovar que você foi vítima de fraude. Em seguida, o Detran pedirá uma série de documentos, fotos do carro original e certificado de licenciamento.
O Detran instaura uma restrição administrativa para que todas as autoridades saibam que seu carro foi vítima de fraude
André Schaun
Quando a fraude for comprovada, o próprio Detran vai inserir nos registros uma restrição administrativa para que todas as autoridades saibam que seu carro foi vítima de fraude. E será iniciada a busca do criminoso.
O advogado Rigamonti faz um alerta muito importante: “Mesmo depois da instauração do processo no Detran, as multas não são anuladas automaticamente: você precisa entrar com recurso para anular uma por uma, sem exceção. É um processo demorado e muito chato; todavia, é isso o que deve ser feito”.
Enquanto o carro clonado não for localizado, é preciso ficar alerta a multas e possíveis problemas judiciais com o veículo. Por isso, é bastante importante instaurar o inquérito e entrar com recursos contra todos os delitos do criminoso. Se você encontrar dificuldade nos processos do Detran, contate um advogado.
Questionado por Autoesporte sobre essa facilitação para a clonagem de placas do Mercosul, o Ministério da Infraestrutura diz que a “nova placa traz vários mecanismos para evitar fraudes e os requisitos foram acordados pelos países do Mercosul, incluindo o Brasil”.
O Ministério ressalta ainda que “O Senatran e os Detrans atuam juntos para cumprir os preceitos previstos na resolução, visando sempre melhorar os processos”. E finaliza dizendo que “ao adotar o credenciamento dos estampadores de PIV, o mercado se abriu e trouxe a possibilidade de reduzir o preço pago pelo cidadão”.
Várias mudanças foram feitas no decorrer dos anos e itens de segurança foram removidos
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Mudanças da placa Mercosul com as resoluções
Desde quando começou a ser regulamentada no Brasil, a placa do Mercosul foi perdendo itens importantes de segurança
1. Resolução nº 729 – 06/03/2018: Primeira e completa versão da placa, com todos os itens de segurança.
2. Resolução nº 741 – 17/9/2018: Retirada do lacre de segurança. Foi substituído pelo QR Code, que reduziu a segurança da placa.
3. Resolução nº 748 – 30/11/2018: Retirada da bandeira do estado e do brasão do município, o que dificulta a identificação de origem e registro do veículo.
4. Resolução nº 780 – 26/06/2019: Placa praticamente limpa: exclusão de mais itens de segurança e remoção de sinusoidais e inscrição com efeito difrativo.
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