Os tempos mudaram, mas acidentes de carros continuam sendo grandes responsáveis por mortes Domingo de sol, dia de praia. O primogênito corre para esquentar o motor de dois tempos do DKW Vemaguet, acelerando os três cilindros com a ponta do pé. Pais, tios e primos chegam em seguida, envoltos pela nuvem azulada, e a mãe abre a porta da garagem apressada para dissipar a densa fumaça.
A descida da serra é sempre uma diversão para a criançada, que se espreme no porta-malas entre garrafas de cerveja e refrigerante (de vidro, pois as latas só chegariam em 1971 e a PET, em 1988) e travessas de pirex com guloseimas embaladas em panos de prato.
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Os pneus diagonais 560×15 da perua gemem nas curvas e o freio sofre fadiga: é preciso parar em algum recuo da estrada de mão dupla e esperar as lonas esfriarem para seguir viagem. [O freio a disco, de aço sólido e pastilhas de amianto, já existia na época, inovação local do Renault/Willys Gordini 1967, mas o padrão era o freio a tambor.]
Começo de noite, a subida da serra e a chuva, que sempre vencia a batalha contra as morosas palhetas dos limpadores. O pai, sonolento por causa das caipirinhas, dirige debruçado no volante de baquelite, uma resina quebradiça, enquanto o tio, ao seu lado, encarrega-se de desembaçar o vidro com um tufo de estopa (ar-condicionado só no Willys Itamaraty de 1967), já que o quebra-vento não dá conta de manter a transparência do para-brisa laminado.
Os dois vão nos bancos dianteiros, fumando cigarros sem filtro e ambos sem cinto (obrigatório desde 1968, mas de uso facultativo até 1997). Atrás, a prima adolescente segue espremida entre a mãe e a tia, que segura o bebê no colo (cadeirinhas infantis só se tornariam obrigatórias em 2008). Os garotos dormem entre garrafas e louças vazias no bagageiro. Todos chegam exaustos, mas a tempo de acompanhar o tele-catch e as tesouras-voadoras de Ted Boy Marino na TV preto e branco.
Você acabou de acompanhar uma cena comum entre as famílias paulistanas de classe média dos anos 1960 (e, de resto, entre muitas famílias brasileiras daquela época) por um motivo: você é filho ou neto de uma geração de sobreviventes.
Nós, os garotos das décadas de 1960/1970, sobrevivemos à ignorância, à falta de segurança dos automóveis, ao não uso do capacete, às ruas e estradas precárias e mal sinalizadas.
Sobrevivemos, igualmente, aos efeitos nocivos do tolueno, toxina encontrada na cola de fixação dos revestimentos internos dos carros daquela época, mas que, para nós, representava o incomparável cheiro de carro novo. O tolueno, ou metil-benzeno, só seria banido dos automóveis na metade dos anos 1980.
Por falta de dados confiáveis, é arriscado estabelecer comparação entre o número de vítimas do trânsito naquele tempo com o de hoje. Mas é seguro afirmar que o aumento da frota de veículos, aliado à má-formação do motorista, ocasiona proporcionalmente mais fatalidades agora do que antes.
Em 1960, o IBGE contabilizou 1.046.275 veículos em circulação no país, dos quais 502.546 automóveis, para uma população estimada de 80 milhões — pouco mais da metade do que somos hoje. Até agosto deste ano, aponta o Ministério da Infraestrutura, circulavam 113.753.718 veículos (59.990.959 automóveis).
E, apesar do indiscutível avanço dos recursos de segurança viária, do rigor da lei e da maior conscientização da população, 20.053 pessoas perderam a vida em acidentes de trânsito em 2021, segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária. Em média, uma morte a cada 12 minutos!
Continuamos sobrevivendo, apesar de tudo.
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