Em 2023 a marca italiana dará adeus ao motor e vai investir na eletrificação do doze cilindros Nascido em 1916, Ferruccio Lamborghini era filho de uma família com bons recursos financeiros e se tornou um fabricante de tratores e ares-condicionados na região de Bolonha nas décadas de 1940 e 1950. Quando os negócios prosperaram, passou a colecionar automóveis de luxo. Ele sonhava poder, um dia, produzi-los em nome próprio.
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O que era desejo tornou-se uma obsessão depois de um desentendimento com Enzo Ferrari: Ferruccio reclamou de uma falha técnica na sua Ferrari e disse que o melhor seria guiar um dos seus tratores. É verdade que a distância entre Maranello e Modena é de pouco mais de 30 km, mas isso não impediu que essas duas “aldeias” acabassem se transformando nos berços dos superesportivos mais venerados do mundo.
Ferruccio era autodidata em mecânica e desenvolveu mais seu conhecimento quando trabalhou em máquinas bélicas como prisioneiro na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. Mas isso não era suficiente para desenhar um motor. Ele aproveitou a falta de sintonia entre o talentoso engenheiro Giotto Bizzarrini (“pai” da Ferrari 250 GTO) e Enzo Ferrari e contratou o profissional para chefiar o projeto do primeiro Lamborghini da história. Revelado em 1963, o 350 GT era equipado com motor V12 3.5 de 280 cv de potência.
Lamborghini Diablo nasceu nos anos 1990 e produção durou 11 anos
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Bizzarrini tinha enorme orgulho de sua obra, um autêntico motor de corridas que ele dizia ter 400 cv a 11.000 rpm (parte dos seus conceitos técnicos eram comuns aos do primeiro motor V12 da F1, o Honda RA 271). No final, porém, terminou com os 280 cv depois de Bizzarrini e Dallara (seu braço direito e mais tarde conceituado fabricante mundial de monopostos) o terem “domesticado” para ser utilizado no Gran Touring, com funcionamento mais suave e maior longevidade.
Essa foi a base do V12 que seria usado durante 48 anos, entre 1963 e 2011, em vários Lamborghini. Seu valor técnico ficou atestado pelo fato de o propulsor ser o recordista mundial de longevidade na indústria com suas várias “mutações”, como aumentar o volume em 44% (até 6.5 litros) e mais que duplicar a potência (até chegar aos 670 cv do Murcielago).
O V12 durou 48 anos, o que atesta seus méritos técnicos; várias “mutações” que o levaram a mais que duplicar a potência
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Diz a lenda que Ferruccio Lamborghini concedia um bônus a Bizzarrini por cada cavalo a mais que o motor tivesse em comparação com o da Ferrari…
Os modelos mais importantes que receberam esse propulsor foram, além do 350 GT (1964-1966), o Miura (1966-1973), o Countach (1974-1990), o LM-002 (1986-1993), o Diablo (1990-2001) e o Murcielago (2001-2010). Neste último, a Lamborghini já tinha sido comprada pela Audi (em 1998), mas a marca alemã, reconhecida por suas elevadas aptidões para engenharia, decidiu mantê-lo em uso.
Em 2011 foi revelado o novo V12 no Aventador, cuja produção termina no final deste ano — o que significa um ciclo de vida muito mais curto, de apenas 12 anos. A necessidade de cumprir as cada vez mais restritivas normas de emissões de gases poluentes manda que, em 2023, apareça um sucessor já eletrificado.
Ferrucio Lamborghini posa com suas criações: carros e tratores
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A segunda geração do V12 manteve o deslocamento de 6.5 litros, mas com cilindros mais compridos e estreitos, taxa de compressão mais baixa e um peso 18 kg inferior, além de ter um cárter seco com altura bem menor (120 milímetros contra 195 mm). Segundo Maurizio Reggiani, diretor técnico da Lamborghini na época de seu lançamento, isso se traduzia “em uma importante redução do centro de gravidade do carro”.
Quando os engenheiros da Lamborghini receberam o primeiro briefing para o desenvolvimento do novo motor, foram impostas apenas três características principais: que fosse um V12, aspirado (o ar na admissão depende apenas da pressão atmosférica e não há indução forçada por um compressor) e com ângulo de 60 graus entre as duas bancadas de cilindros. A não utilização de turbo tinha a ver com a pretensão de obter um tipo de resposta mais progressiva e com a intenção de elevar as rotações às alturas (e, com isso, conseguir uma sonoridade “mágica”).
A paixão dos italianos por automóveis é separada por apenas 30 km – distãncia de Maranello a Sant’Agata Bolognese
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No caso da arquitetura, a explicação é mais longa. O ângulo mais comum entre as bancadas de cilindros de um V12 é de 60 graus ou múltiplos de 60 (120, 180) por permitir uma regularidade ciclicamente perfeita. É a única arquitetura (além da dos seis cilindros em linha) que permite um equilíbrio natural por anular vibrações.
Por outro lado, nos motores de 12, o fato de haver sempre três cilindros no tempo de combustão permite evitar interrupções entre impulsos de potência, o que explica sua suavidade. E a configuração, em geral, é a receita única para uma sonoridade fascinante: em um momento, imita o ressoar dos trovões em uma temerosa tempestade e, no outro, emana a tranquila harmonia de funcionamento dos cilindros entre si, afinados como em uma competente orquestra.
O primeiro motor V12 foi construído em 1904 para um barco de corridas, e só em 1913 foi utilizado em uma competição de automóveis. Já a primeira aplicação em um automóvel se deu no Fiat Superfiat, lançado há exatamente um século e que foi o único modelo de produção em série com esse tipo de motor durante anos.
Countach e Diablo são obras de arte do design assinadas por Marcello Gandini
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Mais tarde, esses propulsores ganharam protagonismo nos aviões durante a Segunda Guerra Mundial e continuaram a ser montados em barcos, locomotivas de comboios e automóveis de luxo, sobretudo na Europa (os norte-americanos quase sempre preferiram enormes blocos V8). Depois da Ferrari, com o 166 Inter de 1948, e da Lamborghini, com o 350 GT de 1963, foram lançados automóveis com motor V12 por Jaguar, BMW, Mercedes-Benz, Aston Martin, Audi e Rolls-Royce a partir dos anos 1970.
Encontro histórico
Agora que o V12 da Lamborghini será reformulado, aos 60 anos de vida (que serão completados em 2023, quando será substituído por um V12 híbrido plug-in), que melhor homenagem haveria do que ir a Bolonha fazer uma série de trajetos nos mais icônicos modelos que tiveram o privilégio de carregar esse histórico motor?
As portas com abertura no estilo tesoura eram marca registrada do Countach.
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Foram organizados pequenos percursos com quatro dos mais importantes esportivos com motor V12 partindo de Cesena, cidade na província de Emilia-Romagna, 90 km a sudeste de Bolonha. Os carros foram alinhados à minha frente para que eu optasse por um para iniciar o dia. O embaraço da escolha foi grande, então o melhor era tomar a decisão de um assunto tão emotivo da forma mais racional possível: vamos por ordem cronológica.
Ao contrário dos nomes escolhidos para batizar os modelos da Lamborghini depois dos 350 GT e 400 GT, que homenageavam alguns dos touros mais corajosos da história, Countach é a palavra usada em um dialeto de Piemonte para exprimir reação de espanto e incredulidade. Apresentado em 1973, foi o primeiro com portas de abertura no estilo tesoura, e sua carroceria de formas austeras e marcada por duas linhas principais é considerada uma das obras-primas do design de automóveis de todos os tempos.
Ferruccio tinha sido um obstinado defensor dos Gran Turismos, mas o sucesso do Miura (antecessor do Countach) mostrou-lhe o enorme potencial dos cupês esportivos de dois lugares. Mantendo a posição central-traseira do motor e a tração traseira, o Countach melhorou aspectos como a estabilidade em alta velocidade, o sobresterço ao soltar o acelerador, a divisão de peso pouco equilibrada e problemas de refrigeração do V12, que passou a ser montado longitudinalmente, e não transversalmente como no Miura.
O motor 5.2 V12 do jipão LM-002, considerado o avô dos atuais SUVs de luxo, tinha 20 cv a menos que o dos superesportivos para que o consumo não assustasse tanto os clientes
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As primeiras séries usavam um bloco 3.9 de 375 cv, mas foram feitas várias melhorias até o final da produção, em 1990. A versão guiada, a “25º aniversário”, foi a última saída da fábrica de Sant´Agata Bolognese com o V12 5.2 de 455 cv, além de quatro válvulas por cilindro, configuração usada pela primeira vez na Lamborghini.
Entrar em um carro tão baixo e com portas estilo tesoura requer elasticidade, mas isso é apenas um preâmbulo para o que viria a seguir. O seletor do câmbio manual de cinco marchas (com a primeira no lugar habitual da segunda e a ré no lugar da primeira) exige firmeza de movimentos, além de força para movê-lo ao longo das seis calhas metalizadas. O mesmo se pode dizer dos pesadíssimos embreagem e volante, ainda à espera da chegada dos sistemas de direção assistida.
Lamborghini Countach e LM-002
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Todos esses anacronismos românticos — e o fato de se tratar de um carro de coleção que vale mais do que minha casa — forçaram-me a redobrar os cuidados na estrada, ainda mais em um país onde a forma de guiar é bastante criativa. Seja como for, a sonoridade do V12 e a capacidade de aceleração repentina e prolongada continuam a impor respeito, mas os freios a disco nas quatro rodas ajudaram a moderar os ímpetos.
A passagem para o Diablo, sucessor do Countach, deu a impressão de uma viagem no tempo. Ele é visto como um esportivo de linhas italianas com um banho de design norte-americano. Foi o primeiro Lamborghini com carroceria sport com tração integral na versão VT (Viscous Traction, pelo seu diferencial de acoplamento viscoso), de 1993. Também foi o primeiro a passar dos 300 km/h (330 km/h, precisamente).
Para além do seu comportamento mais eficaz, o fato de dispor de direção assistida muda bastante as sensações ao volante. Com injeção eletrônica multiponto, a potência subiu 95 cv (até os 550 cv) se comparada à do Countach, e o funcionamento geral fica mais próximo de um superesportivo atual, com aceleração de zero a 100 km/h feita em 3,9 segundos, por exemplo.
Contraste entre presente e passado: à frente o Aventador Ultimae, seguido pelo belíssimo Diablo, lançado em 1990
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De um pequeno salto para trás no tempo para uma experiência como copiloto do LM-002, o avô dos SUVs de luxo que hoje se tornaram comuns em todo o mundo. “Durante os anos de produção do Countach, a Lamborghini viu uma oportunidade de mercado para fazer um jipe militar e avançou para uma carroceria do tipo ‘caixote sobre rodas’, que nada tinha a ver com os seus modelos habituais”, afirma Massimo Delbò, consultor da marca para clássicos.
A Lamborghini instalou o V12 5.2 do Countach (com menos 20 cv para que o consumo não fosse tão assustador) sob o capô e rodou-o 180 graus. Incluiu ainda tração nas quatro rodas, com diferencial central e reduzida. Houve versões com carburador e outras com injeção, mas a produção total foi de apenas 328 unidades. “Foi um flop comercial, mas é hoje uma relíquia como clássico, valendo mais de 300 mil euros, o triplo do seu preço como novo na década de 1980”, assegura Delbò.
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Como copiloto pude apreciar o conforto de rolamento, muito superior ao de qualquer Lamborghini, o desempenho fora de série e a ação dos potentes freios a discos ventilados nas quatro rodas, fundamentais para acalmar os ânimos do bloco de 2,6 toneladas.
Chamou a atenção o contraste entre o exterior, de formas elementares, e o luxo da cabine, dominada por madeira e pele. Ainda hoje ele é conhecido como “Rambo Lambo” por sua vocação, mas também porque um de seus proprietários foi o ator Sylvester Stallone, uma das celebridades que tiveram um LM-002 na garagem.
Outro salto no tempo (maior dessa vez, pois no meio existiu o Murcielago) e entro no último Lamborghini com um V12 “puro” da história: o Aventador em sua série “Ultimae”. O esportivo entrega incríveis 120 cv/litro de potência específica (total de 780 cv extraídos do 6.5).
Test drive com os quatro carros icônicos da marca italiana foi feito a partir da cidade de Cesena, perto de Bolonha
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A expressão usada por Mitja Borkert, diretor de design da Lamborghini, para definir suas linhas é bastante feliz: “O design externo é inspirado nos contornos de naves espaciais, caças de guerra e cobras venenosas”. Um leve toque no ameaçador botão vermelho no console central e é como se tivéssemos aproximado a capa vermelha do focinho desse touro — que agora vamos conhecer enraivecido.
O rugido é premonitório, então o melhor é arrancar com alguma precaução no pedal da direita e colocar no modo de condução Strada. Com essa personalidade relativamente tranquila, quase dá para tentar não chamar a atenção com o Ultimae na cidade. Depois, à medida que se avança para modos mais “dramáticos” — Sport e Corsa —, tudo se torna mais intenso, instantâneo e único. Vai deixar saudade…
POLO STORICO, O MUSEU VIVO
Museu da Lamborghini
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Inaugurado em 2015, o Polo Storico é um departamento da Lamborghini dedicado a preservar a identidade histórica da empresa. Sua principal missão é a certificação e o restauro de todos os Lamborghini produzidos até 2001. Para tal, supervisiona a preservação e a aquisição de novas fontes para os arquivos da companhia, permitindo, assim, recuperar o melhor de todos os Lamborghini clássicos.
Rodrigo Ronconi, um dos responsáveis pelo Polo Storico, diz que “o primeiro passo quando se encontra um Lamborghini para ser restaurado é a verificação da identidade, com a busca de números de chassis, de motor, da caixa de câmbio etc.”. Só depois começam os trabalhos de investigação de todas as peças, procura das cores originais e de revestimentos, com base em toda a documentação em papel existente em enormes dossiês que ocupam as muitas prateleiras do Polo Storico.
Toda a documentação será digitalizada para que tudo possa se tornar mais facilmente preservado e consultado no futuro. “A Lamborghini teve vários donos e a informação estava muito dispersa em diversos países do mundo, por isso foi um trabalho muito complicado e moroso”, conclui Ronconi.
Um dos veículos aqui restaurados que ficaram famosos nos últimos tempos foi um Countach LP 500 no tom amarelo Giallo Fly Speciale. Esse modelo foi apresentado no Salão de Genebra de 1971 e destruído três anos mais tarde (em março de 1974) em um teste de colisão para homologação. O que sobrou do carro tinha sido dado como desaparecido, mas um colecionador inglês encontrou-o e solicitou a intervenção do Polo Storico para o “ressuscitá-lo”.
Foram necessárias 25 mil horas para que a missão fosse concluída. O Centro Stile Lamborghini deu uma contribuição imprescindível, redesenhando a carroceria de forma que ficasse exatamente igual à original. Os componentes mecânicos usados eram todos originais restaurados ou peças feitas especificamente para o modelo. No caso do chassi e da carroceria, foram refeitos à mão por bate-chapas especializados e até a Pirelli colaborou produzindo um jogo de pneus idêntico ao do carro original.
No final, o orgulhoso proprietário recebeu — como todos os outros — o livro de registro do seu carro restaurado, com informações sobre todos os componentes, cores, números de peças, especificações técnicas e fotografias. Assim nascia mais um Lamborghini clássico muito especial.
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