Conheça a história de Fritz, o primeiro brasileiro registrado como funcionário da Volkswagen do Brasil A história da indústria automobilística brasileira tem poucos nomes conhecidos — como Comandante Lúcio Meira, Wolfgang Sauer e André Beer — e outras centenas, até milhares, de anônimos. Personagens que foram importantes, cada um a seu tempo, em suas passagens por várias empresas e fábricas, mas que acabaram caindo no ocaso por um sem número de razões.
Um representante especial desse enorme segundo grupo é um personagem não exatamente anônimo: seu nome era Marcílio da Cruz Lopes, mas todos o conheciam pelo apelido de Fritz.
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Era uma alcunha irônica, já que se tratava de um homem negro de pele bem escura — e Fritz é um nome comum para homens alemães, geralmente de pele muito clara.
Mas a razão para o apelido não era apenas essa. Quando era pequeno, Fritz foi adotado pelo casal Noack, imigrantes alemães de Joinville, Santa Catarina, que lhe ensinaram seu idioma natal. Ou seja: Fritz era um brasileiro negro que falava alemão tão bem quanto o português.
Fritz e Marcos Rozen (este colunista), em 1999
Acervo MIAU
No início dos anos 1950, Fritz veio para São Paulo sem um tostão no bolso e arrumou um servicinho como lavador de carros em uma nova empresa que havia se instalado em um galpão alugado na Rua do Manifesto, no bairro do Ipiranga: Volkswagen do Brasil.
Um belo dia, o então presidente da empresa, o alemão Friedrich Wilhelm Schultz-Wenk, foi pegar seu Fusca recém-lavado. Fritz não perdeu a oportunidade e lhe perguntou em bom alemão se o serviço estava bem-feito. Schultz-Wenk, é claro, a princípio não acreditou, mas logo percebeu que ali, bem à sua frente, estava um humilde trabalhador brasileiro que falava sua língua — algo raríssimo até hoje.
Fritz então passou a ajudar na montagem dos Fuscas (que vinham desmontados, em um processo chamado CKD, da Alemanha) e não raro atuava como uma espécie de ponte entre a diretoria e, digamos, o chão de fábrica — ainda que ali houvesse, à época, apenas poucos funcionários.
Galpão da Volkswagen na Rua do Manifesto, primeiro emprego de Fritz em São Paulo
Acervo MIAU
Tornou-se notável a expressão “Fritz, komm her!” (“Fritz, venha cá!”), que Schultz-Wenk sempre bradava quando algo era necessário. Um dos casos mais notórios foi quando chegou a primeira Kombi em CKD, cujas instruções de montagem estavam, naturalmente, em alemão.
E foi assim que Fritz, ou Marcílio, se tornou o primeiro brasileiro a fazer parte do livro-registro de funcionários da Volkswagen do Brasil.
Com o tempo Fritz e Schultz–Wenk cultivaram uma relação de confiança e até amizade: Fritz passou a chamar o presidente da empresa, carinhosamente, de Frederico. O ápice foi quando o presidente mundial da Volkswagen, Heinrich Nordhoff, veio ao Brasil para inaugurar a fábrica da Anchieta, em 1959, e Fritz foi destacado por Schultz-Wenk para atuar como uma espécie de babá dos familiares do executivo que o acompanharam na viagem.
E Fritz, do alto de sua simplicidade, ainda conseguiu marcar presença na histórica fotografia em que estão os dois executivos acompanhados do presidente Juscelino Kubitschek desfilando em um Fusca conversível dentro da fábrica — imagem simbólica do começo da indústria nacional de carros.
Fritz na histórica inauguração da fábrica VW da Anchieta, em 1959
Acervo MIAU
Na Anchieta Fritz tinha acesso livre à presidência, o que começou a incomodar muita gente. Ainda mais quando ele denunciou um caso de roubo de peças, que saíam escondidas em Fuscas enviados às concessionárias. A lista de inimigos de Fritz começou a crescer em vários níveis hierárquicos e, com a morte precoce de Schultz-Wenk, em 1969, logo uma desculpa qualquer foi utilizada para demiti-lo.
Dali para a frente, a vida de Fritz despinguelou ladeira abaixo. Na pior fase, ele chegou ao ponto de se ver obrigado a morar na rua, na periferia de São Paulo. Fritz morreu há cerca de uma década, triste pelo abandono e por jamais ter recebido nenhum reconhecimento ou apoio por parte da VW em seus momentos mais difíceis. Quase por um acaso, um conhecido em comum permitiu que eu encontrasse Marcílio e conhecesse sua história.
Hoje, Schultz-Wenk é nome de rua em São Bernardo do Campo. Fritz, ou Marcílio da Cruz Lopes, não. Ele bem que merecia batizar, ao menos, uma grande avenida — que então representaria uma grande homenagem a todos os heróis anônimos da nossa indústria.
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